A “crise política” e a convocação de eleições antecipadas
Muito se tem escrito e falado sobre o convite a Durão
Barroso para presidir à Comissão Europeia e sobre a pertinência, ou não, da convocação de eleições antecipadas.
I. A saída de Durão Barroso: honra ou fuga?
Em primeiro lugar, convém rebater o argumento que a saída de Durão Barroso significaria
uma fuga de um primeiro-ministro em dificuldades. É um argumento que não faz sentido. Essa saída só pode ser vista como uma
promoção, um reconhecimento do trabalho realizado à frente do governo português. Alguém imagina que, em toda a União, não
existiriam outras possibilidades para a liderança da Comissão? Obviamente que não. O que sucede é que Durão Barroso é visto,
entre os seus pares, como alguém competente, capaz de liderar eficazmente os destinos da União.
Aliás, não deixa de ser interessante verificar que quem desvaloriza hoje o convite
ao nosso primeiro-ministro é quem ontem tudo fez para que António Guterres ou António Vitorino fossem convidados. Seria por
ser uma desconsideração para Portugal e para os próprios?
Finalmente, relembre-se que o próprio Presidente da República considerou (sem reservas)
tal convite como uma honra e um reconhecimento para Portugal e para o próprio Durão Barroso.
II. Crise ou não crise, eis a (falsa) questão
A oposição (e os media) falam na existência de uma crise. Mas esquecem-se que, se
não forem convocadas eleições antecipadas, não existe qualquer crise! Sai o actual primeiro-ministro e, no quadro da presente maioria parlamentar, nomeia-se um novo Chefe do Governo.
Além disso, esta evolução é a que tem mais respaldo jurídico-formal, decorrendo da
própria Constituição Portuguesa.
Foi, de resto, o que sucedeu quando Pinto Balsemão foi nomeado primeiro-ministro.
Embora em condições trágicas e lamentáveis, o facto é que houve uma vacatura do lugar de Chefe do Governo, tendo a mesma sido
preenchida através da nomeação de um novo primeiro-ministro, no quadro de uma maioria parlamentar, sem recurso a eleições
antecipadas.
Quem defende a suposta “crise”, defende também que há argumentos a favor
da convocação de eleições antecipadas. Desde logo, o argumento ad hominem. Santana Lopes não seria pessoa com capacidades
para liderar um governo. Ora, isto não é um argumento; é um preconceito, porque baseado em impressões generalistas, que em
nada abonam quem as produz.
Há também quem diga que Santana Lopes não tem legitimidade partidária, por não ter
sido eleito líder nem indicado para assumir a liderança do governo em Congresso Nacional. Embora esse seja, sobretudo, um
problema interno do partido, é fácil perceber que tão-pouco é um argumento válido. Os Estatutos Nacionais do PSD são claríssimos:
entre Congressos, o órgão máximo do partido é o Conselho Nacional, que se pronunciou a favor da indigitação de Santana Lopes
como primeiro-ministro, por 98 votos a favor e 3 contra.
III. Casos em que o Presidente da República admite dissolver a Assembleia da República
Refira-se, também, que o próprio Presidente da República definiu, em tempos, os casos em que considerava
apropriada a dissolução da Assembleia da República e consequente realização de eleições antecipadas.
Há dois casos que claramente nada têm a ver com a situação actual: o Parlamento mostrar-se incapaz
de gerar soluções governativas estáveis ou a necessidade, consensualmente reconhecida, de adaptação dos calendários eleitorais.
Uma terceira hipótese seria utilizar a dissolução do Parlamento como uma forma de prevenir ou solucionar
crises políticas ou institucionais graves. Comentarei esta hipótese mais para o final [ponto V], por ser a mais citada
pela Esquerda.
A não ser nestas situações anteriores, o Presidente defende que a dissolução só deve
verificar-se em três circunstâncias excepcionais e muito estritamente delimitadas:
·
Quando a actual maioria
não permitir a formação de um governo capaz de mobilizar adequadamente as energias nacionais para as tarefas que se colocam
ao país;
·
Quando o interesse
nacional exigir a relegitimação da representação parlamentar;
·
Quando a representação
parlamentar, no entender do Presidente da República, deixar definitivamente de corresponder à vontade
do eleitorado.
Ainda segundo o Presidente, há uma condição prévia a estas
três circunstâncias excepcionais:
Logo, a condição prévia a essas três circunstâncias excepcionais não se verifica.
Mas, na minha opinião, essas próprias circunstâncias excepcionais tão-pouco se verificam.
A primeira circunstância seria a actual maioria não permitir a formação de um governo
capaz de mobilizar adequadamente as energias nacionais para as tarefas que se colocam ao país. Ora se há governo capaz de
tal mobilização, é o actual, nomeadamente no que toca a uma das principais tarefas que agora se coloca ao país: a redução
do défice orçamental, objectivo que o PSD tem atingido e que teve como causa, precisamente, a governação socialista.
Aliás, é engraçado ver alguma Esquerda a usar como argumento a favor da dissolução
o facto de Santana Lopes ser, na sua visão, um líder populista e propenso a medidas despesistas, pondo em perigo o objectivo
da consolidação das contas públicas. Enviesadamente, estão a aplaudir a actual coligação PSD/CDS pela política de redução
do défice orçamental (quando há bem pouco a criticavam) e a condenar o descontrole orçamental do governo guterrista. Mais
vale tarde que nunca. Apetece perguntar onde estavam quando o Prof. Cavaco Silva publicou o famoso artigo “O Monstro”,
em que criticava fortemente o despesismo do orçamento do governo anterior... Ora se defendem, ainda que indirectamente, que
a actual coligação está a corrigir o défice criado pelo anterior governo, como podem defender a convocação de eleições antecipadas
e o regresso da Esquerda ao poder?
Por isso, este potencial motivo de dissolução funciona a favor da não convocação
de eleições. Se há solução que garanta estabilidade e mobilização para as tarefas nacionais, ela é a da nomeação de um novo
primeiro-ministro no quadro da actual maioria parlamentar, dando seguimento a um governo estável e que tem vindo a resolver
os problemas que se colocam ao país (sendo isso particularmente óbvio quando o comparamos com o anterior governo).
A segunda circunstância excepcional seria o interesse nacional exigir a relegitimação
da representação parlamentar. É preciso dizer desde logo que o Presidente não fala em relegitimação do governo, mas sim em
relegitimação parlamentar. Isto tem toda a lógica visto termos um regime político-constitucional semi-presidencialista de
pendor parlamentar, que afasta portanto um “presidencialismo de primeiro-ministro”. A legitimidade democrática
do governo é inquestionável mas indirecta (decorre da legitimidade dos deputados à Assembleia da República, da qual emana).
Ora não há qualquer necessidade de renovar a legitimidade dos deputados. Estes foram
eleitos com um programa bem definido, sufragado para 4 anos, que a maioria se propõe continuar até ao final do seu mandato.
Se defendermos o contrário, caímos no perigo de criarmos
um cesarismo do primeiro-ministro, considerado como real detentor da legitimidade democrática. Isto implicaria que o sistema
político de pendor parlamentar seria meramente formal, sendo que na prática a legitimidade democrática directa residiria no
líder do partido vencedor das eleições legislativas.
Para além da redução da Constituição a um documento meramente
formal (neste domínio), assistiríamos ainda a uma diminuição do papel do Parlamento. Ora, existem fortes razões para os constituintes
de 1975 terem responsabilizado o Governo perante o Parlamento e terem feito decorrer a legitimidade democrática indirecta
daquele à legitimidade democrática directa deste. Desde logo, o facto de a Assembleia da República ser por natureza um órgão
muito mais plural e de debate, onde está representada a Oposição. De resto, a competência para legislar sobre as grandes decisões
nacionais é de reserva absoluta da Assembleia. Só o Parlamento pode legislar em questões como impostos, por exemplo.
IV. A vontade do eleitorado
Alguma esquerda defende que a relegitimação da representação parlamentar seria necessária
não pela mudança de primeiro-ministro, mas pelo resultado das últimas eleições para o Parlamento Europeu. Entroncamos aqui
na terceira circunstância excepcional definida pelo Presidente da República, em que este admite dissolver o Parlamento e convocar
eleições quando se convença que a representação parlamentar deixou definitivamente de corresponder à vontade do eleitorado.
O argumento da esquerda é que o eleitorado, nas últimas eleições europeias, exprimiu-se
contra o governo, votando claramente nos partidos da oposição. Logo, a representação parlamentar teria deixado de corresponder
à vontade do eleitorado.
A esquerda esquece-se, no entanto, do perigo que seria um resultado em eleições não
legislativas levar à queda de um governo. Seria criada uma enorme instabilidade devido à incerteza que todos os governos experimentariam
de agora em diante. A cada eleição (autárquicas, regionais, europeias, presidenciais; eventualmente, até, alguns referendos),
o governo ficaria com medo de um mau resultado levar à convocação de novas eleições legislativas por parte do Presidente da
República. Que governo sentiria à-vontade para tomar medidas impopulares a curto prazo para obter benefícios a médio/longo
prazo?
Já para não falar nos efeitos na nossa economia de tal instabilidade e incerteza.
Sabemos como os agentes económicos são particularmente sensíveis à estabilidade política e um clima de incerteza quase permanente
seria claramente prejudicial à nossa economia.
Para além disso, convém vermos os antecedentes nesta matéria. Os portugueses sabem
que não é o mesmo votar numa eleição legislativa ou votar noutras eleições e não esperam que o resultado nestas últimas tenha
consequências directas na manutenção em funções do governo. Pensar o contrário é um insulto à inteligência dos portugueses
e é um erro, se analisarmos os resultados de eleições passadas. Basta vermos que os portugueses deram maioria absoluta ao
PSD nas legislativas de 1987 e de 1991 mas, pelo meio, penalizaram fortemente o PSD nas eleições autárquicas de 1989, tendo,
por exemplo, dado a vitória ao PS nas duas principais Câmaras do país (Lisboa e Porto).
Mas se quisermos uma prova ainda mais forte da capacidade dos portugueses distinguirem
as diferentes eleições, recordemo-nos que em 1987 houve duas eleições simultâneas, para a Assembleia da República e para o
Parlamento Europeu. No mesmo dia, no mesmo momento, os portugueses preencheram dois boletins de voto, um para o parlamento
nacional e outro para o europeu. Nas eleições legislativas, como já foi referido, o PSD obteve maioria absoluta, com 50,22%
dos votos; nas eleições europeias, não passou dos 37,45%! Há melhor prova de que os portugueses distinguem uma e outra eleição?
V. A dissolução como forma de prevenir ou solucionar crises graves
O último motivo que o Presidente da República considera justificar a dissolução da Assembleia da
República é o de tal dissolução prevenir ou solucionar crises políticas ou institucionais graves. Como disse atrás, deixei
este motivo para o final por ser o mais citado pela oposição.
Em primeiro lugar, convém deixar bem claro que não há crise institucional. As três instituições
democráticas (Assembleia, Governo, Presidente) têm um relacionamento normal em Democracia e não houve, nos dois últimos anos,
nada que nos possa levar a afirmar o contrário.
Quanto à existência de uma crise política, sejamos claros: se não forem convocadas eleições antecipadas,
também não existe qualquer crise. Como já foi dito, esta é a solução com mais respaldo jurídico-constitucional. Pode-se concordar
ou não com a nomeação de um novo primeiro-ministro no âmbito da actual maioria parlamentar, mas crise não há. Há, sim, um
impasse causado unicamente pela demora do Chefe de Estado em decidir. Se este tivesse rapidamente decidido pela nomeação de
um novo primeiro-ministro, teríamos já um novo líder governativo em funções, para cumprir o mandato de que a coligação no
poder está investida pelas eleições de 2002.
Para além disso, a convocação de eleições antecipadas obedece a prazos legais, ficando o país num
impasse de meses. Por exemplo, provavelmente só teríamos Orçamento de 2005 aprovado em Abril desse ano.
Tudo isto acarreta o perigo de desaceleração económica, pondo em risco a retoma que tanto necessitamos.
Vítor Constâncio e Miguel Cadilhe disseram que a convocação de eleições teria um impacto mínimo na economia. Ora, numa situação
de grande crescimento económico poderíamos aceitar um tal impacto; na situação actual, não. Por isso a CIP, a AIP, a AEP e
tantos outros se têm pronunciado contra a dissolução da Assembleia. A própria UGT foi extremamente prudente na sua avaliação
da situação política.
Finalmente, o principal argumento contra a dissolução da Assembleia da República como forma de
prevenir ou solucionar uma suposta crise política. Se tivéssemos hoje eleições legislativas, ou teríamos de novo uma maioria
de Centro-Direita (sendo toda esta charada uma enorme perda de tempo, com consequências políticas e económicas graves), ou
teríamos uma maioria de Esquerda de estabilidade no mínimo duvidosa. O PS nunca conquistou maioria absoluta em eleições legislativas
e nada nos permite pensar com certeza que a obteria agora (bem pelo contrário, dada a avaliação que os portugueses fazem dos
governos guterristas). Ora, alguém pensa que um governo socialista minoritário ou um governo de coligação PS/PCP, PS/BE ou
PS/PCP/BE traria uma solução mais estável para Portugal e mais capaz de atingir os importantes desígnios nacionais que agora
enfrentamos? Sobretudo se compararmos com a estabilidade da actual coligação no poder? Haja lucidez... Portanto, este é mais
um argumento que se volta a favor da nomeação de um novo primeiro-ministro no quadro da actual maioria parlamentar.
VI. Resumindo
-
O convite a Durão Barroso é uma honra para Portugal; fuga de quê, se a situação só tem tendência a melhorar?;
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Defender a necessidade de relegitimação dos Deputados equivale a cair numa perigosa concepção cesarista do nosso regime;
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Considerar que a representação parlamentar deixou de corresponder à vontade do eleitorado é algo que é desmentido pelo
passado e que constitui um perigosíssimo precedente;
-
Não há crise institucional nem crise política, mas sim um impasse causado pelo Presidente da República;
-
As eleições antecipadas não têm, portanto, razão de ser – excepto por oportunismo eleitoral da esquerda, que
provavelmente lhe sairia pela culatra;
-
Tais eleições impediriam a actual maioria de cumprir a consolidação das contas públicas e o crescimento sustentado,
acarretando o perigo de crise e instabilidade políticas, para não falar no perigo de desaceleração económica;
-
O Presidente da República, neste quadro, só pode decidir pela manutenção da maioria parlamentar, da estabilidade política
e do crescimento económico, dando posse a um novo primeiro-ministro no quadro dos resultados das últimas eleições legislativas.
Fernando Bravo
Secretário-Geral JSD/Porto (CPC)
Intervenção feita no debate “A crise política
e a convocação de eleições antecipadas”, decorrido na sede do PS/Porto em Julho de 2004. Para além da intervenção contida
neste texto, este debate contou com intervenções do Secretário-Geral da JS/Porto, do Presidente da JP/Porto e de um representante
do BE/Porto. Após estas intervenções houve um período de debate com o público presente.