Guterres. Outra Vez? Por
ANTÓNIO BARRETO In Público, 14 de Novembro de 2004
O Congresso
da Democracia, organizado em Lisboa pela Associação 25 de Abril, serviu de palco adequado para o regresso de António Guterres
à política nacional. Atentamente observado por um sorridente José Sócrates, colocou-se aquele acima das querelas do dia e
tentou a pose de Estado e de reserva.
Usou da contenção
necessária para evitar qualquer precipitação, mas deixou os recados suficientes. Mencionou a urgência da criação de um "projecto
nacional" e garantiu que sabia existir uma "alternativa mobilizadora para reconciliar os cidadãos com a vida política democrática".
Ele sabia que toda a gente só pensava numa coisa: o seu regresso significava que estava dado o primeiro passo para uma eventual
candidatura à presidência da República.
Ninguém ficou
a saber qual era a sua decisão, mas esse era exactamente o objectivo do exercício. Daqui para a frente, vão suceder-se os
silêncios entremeados de frases e aparições, ao mesmo tempo que grupos de "notáveis" começam a organizar-se espontaneamente
e a elaborar cartas e abaixo-assinados. Surgirão, aqui e ali, pequenas e médias vagas, à espera da outra, a de fundo. Especialistas
de comércio e publicidade preparam o seu calendário e as agendas deles. Do Brasil, de Espanha e alhures virão técnicos de
campanhas eleitorais. Toda a gente, a começar pelo próprio, observa as sondagens, analisa as probabilidades, estuda os rivais
potenciais e persegue Cavaco Silva, não se esquecendo de olhar de lado, por cima do ombro, para Soares, Ferro e Alegre. Criar-se-ão
oportunidades para Guterres se mostrar ubiquamente com crianças e idosos, católicos e laicos, a boa gente do interior e os
empreendedores de sucesso. Não faltarão as referências internacionais a Zapatero, Lula e Arafat. Mostrar-se-á à vontade com
computadores e laboratórios sofisticados, tanto quanto com vinho do produtor e barrigas de freira. Despreocupado, será visto
com cineastas e actores. Interessado, passará por acaso em livrarias. Comovido, não faltará a eventos de solidariedade social.
Os excluídos terão posição alta nas suas prioridades.
Talvez já
haja mesmo quem prepare uma biografia, de preferência sob a forma de entrevista, mais fácil e menos comprometedora. Nunca
as televisões deixarão de ser informadas dos seus passos. Muito tempo passará antes que se saiba se é ou não candidato e tudo
leva a crer que nem o próprio, apesar de o desejar, saiba já qual é o sentido da sua escolha. Mas o circo está montado.
Não deixa
de ser curioso que, na sua contribuição para o dito congresso, tenha escolhido o tema da imagem, da política espectáculo e
das televisões. Denunciou a transformação da política em "reality show", ele que é sem dúvida um dos grandes oficiais da arte.
Vituperou contra a crescente "promiscuidade entre a política e os media", ele que é responsável pela estatização de um dos
maiores grupos de imprensa, comunicações e "media", dado que foi com o seu governo que a PT comprou a Lusomundo, alargando
e consolidando a presença do Estado no sector. Alertou para as relações cúmplices entre os políticos, os magistrados e os
"media", ele que tão bem soube juntar esses ingredientes e acrescentar-lhes os interesses dos grupos económicos.
É verdade
que não foi o único. Os publicitários de Freitas do Amaral (nas presidenciais de 1986), de Cavaco Silva (que pouco parecia
precisar deles, mas que os usava), de Durão Barroso (insignificantes) e de Santana Lopes (pletóricos) deram também o seu contributo.
Tanto para a propaganda e a encenação, como para a famosa promiscuidade. E os socialistas, por sua vez, não renunciaram a
tais práticas. Soares, por exemplo, tratava minuciosamente das suas influências na imprensa. Umas vezes com doçura, outras
à bruta. Mas era um artesão. Acreditava nos seus talentos e no seu encanto. Ora, com Guterres, no partido ou no governo, o
estilo foi completamente diferente. É ele o responsável pela profissionalização da imagem, pela organização meticulosa da
sua aparição na televisão, pela sistematização dos seus contactos com os jornalistas e pela generalização de organismos de
propaganda disfarçados de gabinetes de imprensa e de relações públicas. Foi ele que, mais do que ninguém no Partido Socialista
e na esquerda, recorreu a serviços de empresas privadas especializadas na venda de imagem e na construção de personalidades.
Verdadeiro profissional, deve-se-lhe um dos maiores contributos para aquilo que agora, com beata inocência, denuncia.
Embora inesquecíveis
(se é que em política há alguma coisa inesquecível...), estes factos e estas circunstâncias são menores. Não é por essa via
que deve ser feita a principal avaliação do antigo Primeiro Ministro e eventual futuro candidato. Nem sequer talvez pela sua
folha de serviços no governo, onde abriu as portas ao recrutamento de massas de funcionários (o que, aliás, não é um mau trunfo
eleitoral), gastou o que tinha e não tinha, negociou tudo com toda a gente, cedeu quanto pôde e não pôde, adiou reformas,
deixou agravar a crise financeira e alimentou a demagogia. Dado que a Presidência da Republica, em Portugal, é o que é, não
serão esses os principais argumentos. O cargo não exige experiência política de governo.
Há, todavia, um
facto que merece toda a atenção. Numa noite de há quase três anos, assistimos a um gesto inédito na Europa e talvez no mundo.
Em directo, diante das televisões, o Primeiro Ministro Guterres fazia a sua declaração política relativa às eleições autárquicas
que acabavam de se realizar e nas quais o Partido Socialista tinha registado algumas derrotas significativas. Para estupefacção
de toda a gente, a começar pela dos socialistas, anunciou a sua demissão. Apenas tinha cumprido metade da legislatura que,
aliás, se anunciava difícil. Nunca explicou de modo satisfatório a sua decisão. Deixou o partido e o governo em estado catatónico.
Entregou à direita e aos seus adversários o governo e as eleições legislativas que se seguiram. Abandonou funções num momento
em que começava um período de dificuldades para os portugueses. Não teve força para resistir, nem carácter para lutar. Numa
palavra: fugiu. Esse, o facto relevante do seu currículo. Essa, a medida da sua candidatura.
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